1. Introdução

A introdução do artigo “Democracia e Redução da Desigualdade Econômica no Brasil”, de Marta Arretche, apresenta o debate teórico sobre a relação entre democracia e desigualdade econômica. Três correntes principais são discutidas:

  1. Teoria do eleitor mediano, que prevê que a democracia leva à redistribuição via aumento de taxação e gastos públicos.
  2. Teoria da força parlamentar da esquerda, que sustenta que a redução da desigualdade depende da presença da esquerda no poder.
  3. Teorias institucionais e evidências empíricas recentes, que questionam essa relação, apontando que democracias podem conviver com alta desigualdade.

O artigo se propõe a contribuir para esse debate analisando a trajetória da desigualdade no Brasil no período democrático contemporâneo. Há controvérsia sobre se a desigualdade caiu ou permaneceu estável nos últimos 30 anos. Enquanto alguns estudos indicam queda a partir de 2001, outros argumentam que a concentração de renda no topo se manteve.

A autora destaca que a resposta a essa questão depende do conceito e da métrica adotados. Para este estudo, desigualdade econômica é vista de forma ampla, incluindo não apenas a renda, mas também o acesso a serviços públicos essenciais. O artigo defende que a redução da desigualdade no Brasil está relacionada a um mecanismo de inclusão dos outsiders, impulsionado por mudanças institucionais trazidas pela Constituição de 1988 e reforçadas pela competição política.

A estrutura do artigo inclui: (1) definição do conceito e métrica da desigualdade adotados, (2) análise da trajetória da desigualdade econômica entre 1985 e 2015 e (3) exame do mecanismo de inclusão dos outsiders, desde sua origem na transição democrática até sua ampliação por meio da competição eleitoral.

2. Sobre o Conceito e a Métrica da Desigualdade Econômica

A primeira seção do artigo discute como a escolha do conceito e da métrica da desigualdade econômica influencia a interpretação sobre sua trajetória. A autora diferencia desigualdade monetária, que se refere à renda, de desigualdade não monetária, que inclui acesso a serviços, condições de vida e capacidades.

Conceito de desigualdade econômica

Embora os estudos tradicionais tenham focado na renda, Amartya Sen (1973, 1999) argumenta que indivíduos com a mesma renda podem ter necessidades distintas, tornando necessário incluir dimensões não monetárias, como saúde e educação. Além disso, há interdependência entre essas dimensões: a educação afeta a renda, e a renda influencia o acesso à educação.

No Brasil, a inclusão do gasto social em saúde e educação reduz significativamente o coeficiente de Gini, evidenciando que a desigualdade econômica não pode ser analisada apenas pela renda. Contudo, há controvérsias sobre quais dimensões devem ser consideradas. Para este estudo, a autora foca em transferências monetárias, saúde e educação, por serem empiricamente observáveis e diretamente afetadas por políticas públicas.

A política social pode reforçar desigualdades quando direitos e benefícios são vinculados à ocupação formal, criando um mecanismo de fusão de vantagens, no qual alguns grupos acumulam privilégios enquanto outros permanecem excluídos.

Métrica da desigualdade econômica

Duas métricas principais são debatidas:

  1. Princípio Dalton-Pigou, que considera a desigualdade reduzida quando há transferência de renda dos mais ricos para os mais pobres.
  2. Métrica do 1% mais rico (Piketty, 2014), que foca na parcela da renda apropriada pelos mais ricos.

A autora critica a métrica do 1% mais rico, pois ela assume que o principal conflito redistributivo ocorre entre esse grupo e os demais 99%, ignorando desigualdades dentro da população mais ampla. No Brasil, por exemplo, a queda na renda do 1% mais rico entre os anos 1940 e 1960 não significou melhora nas condições dos mais pobres, que ainda tinham baixa escolaridade e poucos direitos trabalhistas.

Abordagem do estudo

O artigo adota uma métrica alternativa, focando na renda do meio e do piso da pirâmide social e no acesso a serviços essenciais. A desigualdade econômica será considerada reduzida se:

  • A desigualdade monetária diminuir, com ganhos de renda relativamente maiores para os estratos inferiores.
  • A desigualdade não monetária cair, com maior acesso dos mais pobres a serviços de saúde e educação.
  • A fusão de vantagens for reduzida, ou seja, se a associação entre renda e acesso a benefícios for menor.

Essa abordagem permite captar mudanças estruturais na desigualdade econômica além da concentração de renda no topo, fornecendo uma visão mais ampla dos impactos do regime democrático sobre a distribuição de recursos no Brasil.

3. A Trajetória da Desigualdade Econômica no Brasil Contemporâneo

A seção analisa a trajetória da desigualdade econômica no Brasil entre 1976 e 2015, abordando tanto a dimensão monetária (renda) quanto a dimensão não monetária (acesso a serviços). As evidências indicam que a desigualdade caiu em ambas as dimensões, com redução mais expressiva sob os governos do PT, mas iniciada em governos anteriores.

Dimensão monetária

A desigualdade de renda, medida pelo coeficiente de Gini, caiu ao longo do período analisado. O declínio começou no governo Collor (1990-1992) e se acelerou a partir do governo FHC (1995-2002), especialmente após 2001. Sob os governos Lula e Dilma, a redução foi ainda mais expressiva, beneficiando principalmente os estratos de renda mais baixa.

Os dados mostram que os estratos inferiores da distribuição de renda tiveram crescimento proporcionalmente maior do que os estratos superiores. Os programas de transferência de renda, como a expansão das pensões não contributivas indexadas ao salário mínimo desde 1992 e o Bolsa Família a partir de 2003, tiveram papel relevante nesse processo. Além disso, a valorização do salário mínimo impactou diretamente os trabalhadores de baixa renda, reduzindo a desigualdade de gênero e raça na base da pirâmide social.

Outros fatores que contribuíram para a queda da desigualdade incluem:

  • Expansão da educação, reduzindo o prêmio salarial da escolaridade.
  • Boom das commodities, aumentando o poder de barganha dos trabalhadores.
  • Mudanças demográficas, com redução na oferta de jovens trabalhadores de baixa qualificação.

Embora a concentração de renda no topo (1% mais rico) tenha se mantido estável, os demais 99% experimentaram redução da desigualdade de renda.

Dimensão não monetária

A universalização do acesso à educação e saúde foi fundamental para reduzir desigualdades estruturais.

Na educação:

  • O ensino fundamental foi universalizado nos anos 1990, impulsionado pelo FUNDEF (1996, governo FHC).
  • A escolarização aumentou, reduzindo desigualdades de acesso, mas as diferenças no ensino médio e superior ainda persistem.
  • A relação entre renda familiar e chances de concluir o ensino fundamental caiu entre 1980 e 2010, mas ainda era significativa no ensino superior.

Na saúde:

  • A criação do SUS (1988) garantiu acesso universal, substituindo o modelo anterior baseado em seguros para trabalhadores formais.
  • Os planos privados ainda são um fator de desigualdade, mas a cobertura do SUS garantiu acesso aos serviços essenciais para os mais pobres.
  • A distância entre ricos e pobres no acesso a atendimentos básicos diminuiu, mas os mais ricos ainda acessam mais serviços preventivos e especializados.

A desigualdade econômica no Brasil diminuiu progressivamente desde os anos 1990, combinando políticas de transferência de renda, valorização do salário mínimo e expansão dos serviços públicos. Embora a redução tenha sido mais intensa nos governos do PT, muitas das mudanças estruturais começaram sob governos anteriores, reforçando que a inclusão dos outsiders foi um processo incremental ao longo do tempo.

4. A Política das Políticas de Inclusão

A seção analisa o processo político por trás das políticas de inclusão dos outsiders, argumentando que sua criação resultou da redemocratização e de estratégias institucionais, e que sua manutenção se deve à competição política por esses eleitores.

I. A criação das políticas de inclusão

A Constituição de 1988 foi um marco ao romper com o modelo conservador de política social, que beneficiava apenas trabalhadores formais. As principais mudanças foram:

  • Universalização da saúde e da educação.
  • Vinculação das pensões ao salário mínimo.

Essas políticas enfrentaram resistência dos insiders (trabalhadores formais), que já possuíam acesso a benefícios previdenciários e seguros de saúde. Apesar disso, a politização da desigualdade durante a redemocratização gerou apoio suficiente para sua aprovação.

A inclusão dos outsiders ocorreu em duas fases:

  1. Redemocratização (1985-1988): Mudanças estruturais foram implementadas, como a extensão do direito ao voto aos analfabetos e a criação de sistemas universais de saúde e educação.
  2. Expansão contínua das políticas (anos 1990 em diante): Os beneficiários se tornaram uma categoria política relevante, levando partidos de diferentes espectros a convergir para atender a suas demandas.

II. Estratégias políticas na Constituinte

A adoção dessas políticas não foi resultado direto do poder da esquerda, que tinha representação minoritária na Assembleia Constituinte. Em vez disso, elas foram aprovadas por meio de uso estratégico das regras institucionais, permitindo que uma minoria progressista aprovasse propostas em comissões temáticas, dificultando seu veto pelo plenário conservador.

Além disso, mesmo setores conservadores reconheceram que a desigualdade extrema poderia ameaçar a estabilidade democrática, favorecendo medidas de inclusão.

III. A convergência eleitoral em torno das políticas

Com a universalização do voto e a ampliação dos benefícios, os outsiders passaram a ser um eleitorado relevante. Estima-se que, em 2014, 25% dos eleitores tinham interesse direto no salário mínimo, e 20% dos domicílios dependiam do Bolsa Família.

Esse peso eleitoral gerou uma convergência entre partidos de direita e esquerda na defesa dessas políticas:

  • Partidos conservadores precisaram expandir sua base para além das elites e da classe média.
  • Partidos de esquerda, como o PT, mobilizaram ativamente o eleitorado de baixa renda, fortalecendo a inclusão como tema político central.

IV. A competição política e a sobrevivência das políticas

Dados legislativos mostram que a oposição parlamentar às políticas de inclusão foi marginal entre 1990 e 2015. Mesmo partidos conservadores evitaram vetá-las diretamente, demonstrando que a competição eleitoral favoreceu a continuidade e expansão das políticas.

O PT teve papel central na politização da desigualdade e na mobilização do eleitorado de baixa renda, influenciando a agenda nacional e consolidando a inclusão dos outsiders como tema político permanente.

Assim, as políticas de inclusão não foram resultado exclusivo da esquerda, mas da combinação entre politização da desigualdade e competição eleitoral. A redemocratização criou as bases institucionais, enquanto a busca por votos garantiu a continuidade dessas políticas, tornando a redução da desigualdade um processo incremental ao longo dos anos.

5. Conclusões

As conclusões do artigo argumentam que, embora o regime democrático contemporâneo não tenha reduzido a parcela da renda apropriada pelo 1% mais rico, ele foi responsável por um processo significativo de inclusão social, diminuindo a desigualdade econômica entre os demais estratos da população.

Impactos da democracia na desigualdade

A democracia recente do Brasil não eliminou fatores estruturais de desigualdade, como:

  • Desigualdade educacional nos níveis médio e superior.
  • Desigualdade racial e de gênero no mercado de trabalho.
  • Persistência da concentração de renda no topo.

No entanto, essas limitações não devem obscurecer o avanço da inclusão social, principalmente por meio da expansão do acesso à educação, saúde e benefícios vinculados ao salário mínimo.

O papel das políticas de inclusão

O artigo argumenta que a redução da desigualdade econômica se deu pela inclusão dos outsiders, isto é, trabalhadores informais e segmentos historicamente excluídos. Esse processo começou com a Constituição de 1988, que:

  • Criou transferências monetárias vinculadas ao salário mínimo.
  • Universalizou o acesso à saúde e educação.
  • Rompeu com o modelo de política social que favorecia apenas os trabalhadores formais (insiders).

Se considerarmos como critério de redução da desigualdade o crescimento proporcionalmente maior da renda dos mais pobres em relação aos mais ricos, além da expansão do acesso a serviços essenciais, podemos afirmar que a desigualdade econômica em 2015 era menor do que em 1984.

Crítica às teorias tradicionais

Os dados desafiam três abordagens tradicionais da ciência política:

  1. Teoria do Eleitor Mediano: Embora os mais pobres possam votar por redistribuição, suas preferências não são homogêneas, pois dependem de fatores como aposentadorias, proteção no emprego e acesso a serviços públicos.
  2. Teoria do Governo Partidário: A desigualdade caiu mais rápido sob governos do PT, mas a origem das políticas de inclusão precede a chegada da esquerda ao poder.
  3. Teoria da Força Parlamentar da Esquerda: As políticas foram aprovadas em um Congresso majoritariamente conservador, resultado do uso estratégico das regras institucionais durante a Assembleia Constituinte.

A expansão das políticas e a competição eleitoral

A inclusão dos outsiders ocorreu em duas etapas:

  1. Transição democrática (anos 1980): Criou-se o arcabouço institucional que garantiu a inclusão social.
  2. Expansão eleitoral (anos 1990 em diante): Os beneficiários dessas políticas se tornaram um eleitorado relevante, levando partidos conservadores e de esquerda a convergirem para atender suas demandas.

Esse processo gerou um efeito de lock-in: as políticas de inclusão se tornaram politicamente sustentáveis porque os beneficiários passaram a ser eleitores decisivos.

O papel da esquerda e a convergência partidária

Embora partidos de esquerda tenham sido fundamentais para vocalizar a desigualdade, sua presença não foi condição necessária para a criação das políticas de inclusão. Em contextos de:

  • Alta participação eleitoral (como no Brasil, onde o voto é obrigatório).
  • Elevada desigualdade econômica.
  • Competição eleitoral intensa.

A própria lógica eleitoral leva partidos conservadores e de esquerda a convergirem para atender as demandas da população de baixa renda.

Conclusão geral

A democracia brasileira não reduziu a concentração extrema de renda, mas diminuiu significativamente a desigualdade econômica entre a maioria da população. Esse processo foi impulsionado por:

  1. Políticas de inclusão dos outsiders, originadas na Constituição de 1988.
  2. Expansão eleitoral das políticas sociais, tornando os beneficiários politicamente relevantes.
  3. Convergência partidária em torno das demandas dos mais pobres, consolidando a inclusão social como um aspecto estrutural da democracia brasileira.

A lição central é que, em países com alta desigualdade e alta participação eleitoral, partidos competitivos acabam pressionados a adotar políticas inclusivas, independentemente de sua ideologia.